Arquivo: Dízimo de Urgezes

"Um amigo cónego legara em seu testamento aos rapazes coreiros uma renda, constante de certa medida de castanhas e maçãs, imposta numa quinta de Santo Estevão de Urgeses. Os coreiros indo ali todos os anos no dia de S. Nicolau receber a renda, vinham depois a cavalo e em hábitos corais oferecer da mesma às pessoas mais gradas da terra." Jornal "O Vimarenense", 12 de Dezembro de 1886.

A RENDA DE URGEZES…
Vamos a A.L. de Carvalho buscar notas seguras sobre esta “posse” daAcademia Vimaranense e não resistimos à tentação de recolher, do hoje precioso livro que é “O S. Nicolau dos Estudantes”, alguns excertos queajudam a aproximar o tempo e a origem da chamada “Renda de Urgezes”,a qual bem pode ser havida como suporte económico da Festa durante muitas gerações de coreiros e estudantes de Guimarães.
E reza a citada bíblia nicolina sobre a Renda de Urgezes, segundo os lançamentos no Livro de “Assentos dos Arrendamentos das Igrejas,Capelas e Ermidas” que a ela se referem: “O rendeiro de Urgeses “… satisfará aos Estudantes do Senhor S. Nicolau, pelo seu dia,a porção a que é obrigado com toda a boa satisfação, como é uso e costume e foi sempre.” Este assento, de que o autor não refere a data, aparece corroborado num outro de 1717 e insiste na expressão “uso e costume” como base e justificação de todo o direito dos “Estudantes do Senhor S. Nicolau” ao dízimo proveniente das rendas da igreja de Urgezes. Mas continuemos a respigar daquele venerando autor:
“Chegados a 1743, o registo determina: “que o rendeiro deve pagar aos estudantes todos os encargos novos e velhos.” Um dos encargos novos consistia em abastecer de azeite a lâmpada da Senhora”.
Esta Senhora é a Senhora da Oliveira, patrona da Colegiada de Guimarães, templo onde então já existia um altar dedicado a S. Nicolau e, para mais, uma belíssima capela construída pelos Estudantes em 1691,
eles já aglutinados em Irmandade própria e assumida. Será atrevimento datar o dízimo e a usança na coincidência da inauguração da dita capela?
Continuemos com A. L. de Carvalho:
“Em 1744 diz assim o registo:
“Há uma costumeira de dar aos Coreiros em dia de S. Nicolau os frutos seguintes: 200 maçãs, ½ rasa de tremoços curtidos, meia de nozes, 2 alqueires de castanhas assadas, e duas dúzias de palha, de grandes molhos.” “Em 1797 fez-se o seguinte lançamento de despesa:
Despendeu-se com o que se paga aos Meninos do Coro na função de S. Nicolau que lá vão, três mil e duzentos reis.” “Em 1799 diz o termo do contrato: Arrendou-se a dizimaria da Igreja de Urgeses e Candoso por tempo de três anos, que principiam no S. João de 1800 e acabam em 1803, com todos seus encargos novos e
velhos.” Em 1800, novo contrato especifica: “… e também com o encargo da posse aos Estudantes em dia de S. Nicolau.” Em 1808, novo rendeiro. A cláusula relat iva aos Estudantes, resava assim: “… com mais obrigação de em dia de S. Nicolau de cada ano (dar) aos estudantes que forem è dita f reguesia na forma do seu costume, dois alqueires de castanhas assadas, meio alqueire de nozes, meio alqueire de tremoços, duzentas maçãs, dois almudes de vinho e duas dúzias de palha de argola.” Sucedem-se os contratos de arrendamento e sempre reiterada a usança do dízimo aos Estudantes, ajustadas mesmo a quantidade e natureza de seus direitos! Continuamos a citar do mesmo autor:1 Em 1812 apenas se diz: “…com obrigação de dar aos Estudantes o que for costume.” Em 1819-1822 o contrato fecha com esta cláusula:
“…livre de todos os encargos que se hão de fazer por conta dele rendeiro.” Em 1823, remata o contrato: “e mais com a obrigação de dar aos coreiros e estudantes que forem à dita freguesia de Santo Estêvão de Urgeses por dia de S. Nicolau, na forma do costume, duzentas maçãs, meia raza de tremoços cortidos, meia raza de nozes, dous alqueires de castanhas assadas, dous almudes de vinho,e duas dúzias de grandes molhos de palha paínça, assim como pagará aos coreiros ou estudantes que forem à dita f reguesia o que já fica declarado nos dias de S. Nicolau, 6 de Dezembro deste ano e do próximo ano, sem falta alguma.” Em 1831 o contrato alude: “… que a entrega dos f rutos seria feita aos coreiros ou estudantes”
Em 1833 o contrato ainda reserva: “Há uma costumeira de dar aos coreiros em dia de S. Nicolau as pitanças seguintes:…..” Os dízimos foram banidos por decreto de 30 de Junho de 1832 e não era grande vontade do Cabido da Colegiada manter uma usança directamente ligada àquele rendimento eclesial: em 1835, os Estudantes e Coreiros
intentavam contra o Cabido da Colegiada uma Acção de Libelo, no Julgado de Guimarães! Então por umas castanhas, umas nozes, uns tremoços, sai a Academia aos Tribunais? Não: sai em defesa de um direito, de uma tradição, de uma costumeira que não queria perder! O processo foi moroso e não resisto à tentação de reproduzir, da citada fonte, o saboroso texto da sentença: “Nada do que alegou provou o Reverendíssimo Réu, (o Cabido), como lhe cumpria, antes desamparando o Juízo, tacitamente renunciou à sua defesa e reconheceu o bom direito dos Autores.
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Acresce a toda a justiça do processado, a simpatia e geral inclinação, maiormente de todo o homem l iterato, por uma usança que, sendo um pouco em real idade, é todavia muito em seus efeitos, pois que é um incentivo à mocidade preguiçosa para as letras, e uma emulação para a estudiosa; é um brinco inocente que apura o génio e desenvolve os espíritos acanhados; é, finalmente, uma usança consagrada pela sua respeitável antiguidade.

 

Em vista pois da deliberação do Júri, e tudo ponderado, julgo procedente a acção intentada, sejam restituídos os Autores à sua pacifica posse, e condeno o Reverendíssimo Réu ao pagamento da pedida pensão, assim do pretérito, como de futuro, na multa da lei e custas do processo. Guimarães, 10 de Março de 1837. a)Agostinho Vicente Ferreira de Castro”. Estudantes e Povo a rebimbar sinos de alegria de pouca dura porque o Cabido recorria à Relação do Porto que, alheia ao peso das tradições vimaranenses, sanou favoravelmente o recurso! No rescaldo, “et pró legis”, há notícia de que um nicolino mais exaltado se não conteve e vem a efeméride:
“Foi espancado o cónego António José Pires Pinheiro, por causa da demanda com os estudantes”. E não seria o último neste ajuste de contas com o Cabido da Colegiada pois em 1903, mais de 60 anos após a demanda, o ilustre João de Meira denuncia em um de seus Pregões Nicolinos:

E quando contra nós se deu sentença
Sobre a renda em questão, coisa imprevista
Vós fostes à Oliveira, sem detença
Para bater no cónego Baptista!


O facto é que a partir da sentença favorável ao Cabido e de certo modo razoável por legalmente extinta a origem da renda — os dízimos recebidos pela Igreja — os Estudantes perderam a regalia centenária e se
acomodaram ao favor de outras posses menos tradicionais mas sempre queridas.
E tinha de ser de novo o Povo de Urgezes a dar mostras do carinho que o concelho de Guimarães mantém pelas suas Tradições e suas memórias; tinha de ser ele a regular, em boa paz e tranquilidade, o restabelecimento da velha costumeira!
No ano de 1998, no seguimento de uma sugestão do Nicolino Mor, Helder Rocha, a Junta de Freguesia de Urgezes levou à votação da sua Assembleia uma proposta que, favoravelmente votada, lhe permitiu assumir o compromisso de restabelecer a Renda de Urgezes e proporcionar aos seus Estudantes — os Nicolinos de sempre — a retoma da velha Tradição.
Gesto lindo!
A merecer a gratidão dos beneficiados e o reconhecimento de todos os Vimaranenses que trazem a Festa no coração. Obrigado senhores da Nobre Urgezes

A.Meireles Graça
Dezembro 2004

De facto, o dízimo ou renda de Urgezes, restaurado pela Junta de Freguesia presidida por Manuel Nunes, por sugestão do nicolino-mor Helder Rocha e aprovado por unanimidade na sessão da Assembleia de Freguesia de 30 de Outubro de 1999, remonta e é referido num assento datado de 1717, no qual se expressa claramente que “o rendeiro de Urgezes satisfará aos Estudantes do Senhor S. Nicolau, pelo seu dia, a porção a que é obrigado com toda a boa satisfação, como é uso e costume e foi sempre”.
Este uso e costume, banido por decreto em 1832 e extinto após decisão favorável do Tribunal de Relação do Porto a um recurso interposto pelo Cabido da Colegiada, estará na origem das posses nicolinas. Era, segundo consta em contrato de 1823, uma “obrigação de dar aos coreiros e estudantes que foram à dita freguesia de Santo Estêvão por dia de S. Nicolau, na forma do costume, duzentas maçãs, meia rasa de tremoços curtidos, meia rasa de nozes, dois alqueires de castanhas assadas, dois almudes de vinho e duas dúzias de grandes molhos de palha paínça”.
Hoje, o dízimo passa pela atribuição de uma verba monetária e géneros costumeiros, como manda e sói a tradição.

Reviver estas tradições foi pois o propósito da Junta de Freguesia de Urgezes, que desta feita substitui o Cabido da Colegida nesta nobre e vetusta tradição vimaranense.

Ata da aprovação em Assembleia Geral da Junta de Freguesia de Urgezes

Fonte:http://www.freg-urgezes.pt/ 


As Posses de Urgezes

«Josias, Emanuel e Valério, eram órfãos da roda de S. Domingos entregues à colegiada como aprendizes coveiros. Já Epifânio e Hilário eram coreiros informados com três anos, dados e cumpridos na função. Suas vozes dominadas já faziam missas cantadas no templo de Santa Maria de Guimarães, hoje da Senhora da Oliveira. Ora, estavam acometidas funções de camaradagem a Epifânio e Hilário pois seriam já estreitos conhecedores dos rituais velhos do senhor S. Nicolau patrono e protector das crianaçs e meninos estudantes, dos pequenos pescados, dos ladrões e dos comerciantes. O dia de S. Nicolau era desejado por toda a estudantada que, neste dia, tinha alforria para dar largas à sua folia, depois de tantos dias, semanas e meses de cantochão. À solta pelos campos, os jovens em gritos e gritas acordavam os nabais e as couves dos quintais por onde trilhavam nas frias madrugadas e em braçadas se apropriavam para, com água géliada da ribeira, produzir um caldo der nabos de couves, ou somente de unto porcino desviado da arca da salmoira. Acordavam assim, aquecendo o corpo e a alma, também agradecendo a S. Nicolau a liberdade e libertinagem, permitida em seu dia. Depois, em busca de pau de lenha para o Santo Nicolau apanhavam a castanha aos molhos para saborosos magustos. Toda esta juventude tinha no Santo uma inspiração, um respeito e devoção que os fazia construir afeição pela feita e seus fazedores. Muitos eram já velhos padres, senhores de hirsutas barbas, agarrado a terceiras pernas de madeira, para espreitar as brincadeiras dos mais novos, neste dia. Era assim que os cinco correios da colegiada , depois da noite animada seguiam agora para Urgezes onde, segundo a recomendação do priorado estava ele obrigado a cumprir o dízimo da dita. Era esta uma quinta que na freguesia lá existira e que velhos frades tinham doado para com o dízimo patrocinar a festa ao Santo Nicolau. A posse de Urgezes era já de fama neste tempo, pois tinha nozes, figos e castanha. Uma rasa de milho para o pão e um naco de porco e ainda salpicão, haveriam eles de tomar no lavrador António da Quinta da Carreira. O dízimo ainda possuía água pé e maçãs pequenas e perfumadas que acabavam dadas às meninas que encontravam pelo caminho. Ao chegar, os cinco devotos ao Santo Nicolau recebidos pelo frade sineiro que também era cozinheiro e fazia gala disso. Gostava com alegria de tomar um bom quartilho de tintol e de o acompanhar com naco de carne de plovo, seco ao sol. Assim, com um largo sorriso deu a posse aos rapazes, fazendo-lhes o aviso da amargura das nozes. Desciam então pelo caminho dos costeiros até aos oleiros da Cruz de Preda e lá, nova posse de caruma e pinhas para acender fogueirinhas na placa maior do burgo. Eram neste tempo estas as posses da terra o sustento dos rapazes, que mantinham a festa viva com matinas e novenas ao senhor S. Nicolau cantadas, por acordo da sossego na Capela da Senhora da Conceição, instalada no caminho do norte orientado para Bracara Augusta. As posses velhas desapareceram com o tempo que as apagou da estória, mas como o povo tem meméria, foram recuperadas há uma década pelas novas gerações tendo sido o Dízimo de Urgezes especialmente estudado e reproduzido, para que o presente e o futuro assim as entenda. O dízimo de Urgezes é pois, simbolicamente a posse mais antiga existente e, na cidade, a posse da saudade. Então Emanuel e Josias e Valério com os dois companheiros Hilário e Epifânio sabiam que tinham de dar entradas pela porta da colegiada antes de o sol nascer no dia sete. Estava cumprida a função. Com ela se construiu uma tradição que tem vida imaginário e sonho em muitas gerações de velhos estudantes de Guimarães. Este conto é dedicado a todas as gerações de nicolinos que ao amor, fraternidade e dedicação mantiveram viva as festas ao Senhor S. Nicolau. À AAELG-VN detentores da função vigilante.»

in, Contos e Lendas de Urgezes da autoria de Fernando C. Miguel


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