Arquivo: Pregão de 1911
 
   
     
       
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        Bando Escolástico [Impresso]/Souza Macario.-Guimarães: [CFN], 1911(imp. Typ. Minerva Vimaranense).-[1] f.; 43x27cm Impresso s/ papel branco a azul. Restaurado com fita cola.
  Recitado por Arnaldo Passos |  
      
 
     
  
 
  
 
 
Mais de quatro décadas depois de ter escrito o primeiro pregão (em 1868), o general Sousa Macário, escreveu o segundo, que foi lido nas Festas a S. Nicolau do ano de 1911. Foi recitado pelo estudante Arnaldo Passos. Por aqueles anos politicamente agitados, as Festas Nicolinas continuavam a ser postas em causa, nomeadamente nos meios republicanos mais militantes. As críticas mais acutilantes vinham no jornal Alvorada, dirigido por A. L. de Carvalho (que, não tarda veremos, ainda virá a ser um dos principais cultores das festas dos estudantes a Guimarães, escrevendo, nomeadamente, um pregão). Num pequeno texto, em que se anunciava a proximidade das Nicolinas, publicado no seu número de 16 de Novembro de 1911, aquele jornal qualificava as festas como “uma estopada anual que a terra tem de gramar” e onde, a certa altura, se lia:
 
 
 
Perdoem os rapazes académicos, mas já ninguém lhes acha graça; e será até para estranhar se não acabarem por ser corridos… à batata.
 
 
 
A resposta seria dada no pregão e seria encaixada com bonomia pelo redactor do Alvorada, que escreveria, na edição de 7 de Dezembro:
 
 
 
O “pregão” era trabalho do snr. Sousa Macário, de Lamego. O chiste dos seus versos ressalta brilhante na parte em que parece vir-nos subscritada, por aqui termos tido a ousadia de afirmar que o programa das festas de tanta tradição carecem de reforma, visto estarem fora de época e mais parecem – um carnaval em Dezembro.
 
 
 
A “entrega das maçãs” foi modesta, mas limpa, e as “danças”, embora vertidas em boaNa reportagem que publicou sobre as festas a S. Nicolau deste ano, um outro jornal, o Imparcial, na sua edição de 8 de Dezembro, referiria, a propósito do pregão:
 
Na terça-feira 5, meia dúzia de foguetes anunciaram ao longe o Bando Escolástico. Ia muito garoto e gente plebeia atrás do carro, na ilusão, por ventura, de que os estudantes, por compaixão, os contemplassem com alguma vasilha cheia do líquido que, no pregão, Sousa Macário, nos seus alexandrinos bem medidos, dizia estar caro. Mas… fosse pelo que fosse, o povo não os largava, sinal de que gostou.
 
Ou seja, não se concretizou o prognóstico da Alvorada.
 
 
 
Festas Nicolinas de 1911
 
Bando Escolástico
 
Recitado pelo aluno
 
Arnaldo Passos
 
Em 5 de Dezembro
 
 
 
                            Embora pouco azeite e caro o bacalhau
 
Há-de a festa brilhar do nosso Nicolau;
 
Não perde o seu folgar a nossa academia
 
Sempre ao mesmo tom, a mesma galhardia:
 
A mocidade assim desconhecendo dores
 
Não se importa do azeite, importam-lhe os amores:
 
A vida é o amor, oh! Loira mocidade
 
Quererem que tu já chores nesta tão bela idade!
 
 
 
Que importa o azeite caro ou mesmo o bacalhau
 
Não fica sem festança o nosso Nicolau.
 
 
 
Haja embora quem diga a festa é já cediça,
 
Que o Povo já não quer nem festas, nem a missa,
 
Já graça não encontra à chocha versalhada
 
Que não tem sal nenhum, que não presta para nada.
 
Que é melhor dar-lhe fim, dar fim às zambumbeiras
 
Que fazem estrugir as nossas mioleiras;
 
Mas quem assim pensar atesta bem que é tolo,
 
Que macacos já tem a moer-lhe o miolo.
 
 
 
Não julgue quem pensar assim dessa maneira
 
Que nos faz recuar da festival canseira;
 
É alegre a mocidade e o sangue anda a pular
 
E o Povo quer-se rir, e o Povo quer gozar;
 
E a festa há-de reinar, não finda nem a pau,
 
Embora finde o azeite e finde o bacalhau.
 
Que a brincadeira e o amor também nos alimenta
 
Quando temperada for, com bom sal e pimenta.
 
 
 
Que importa mude o fado para lei mais infeliz.
 
Como a que fez mudar o antigo chafariz?
 
Como também mudou, por idêntica lei
 
O nosso egrégio herói, nosso primeiro rei,
 
Julgando que ele assim, no jardim do Toural,
 
Pudesse namorar damas seu ideal
 
Tudo pode mudar por um fado iracundo,
 
Não muda a mocidade o seu folgar jucundo;
 
Enquanto houver amor e mulheres fagueiras.
 
Hão-de sempre reinar as festas galhofeiras;
 
Quem ordena é quem pode, é o Santo Nicolau,
 
Que embora seja aqui, um santo só de pau.
 
 
 
E tu ó Guimarães, princesa entre as mais belas
 
Que encerras em teu seio as mais gentis donzelas,
 
Que és do Minho o paraíso em mimos e em primores.
 
Que dás à mocidade inspirações de amores,
 
Não deixes de prezar os jovens estudantes
 
Que te serão leais, que te serão constantes,
 
Constantes em louvar teus dotes de beleza,
 
Em nós confia, e crê, nossa imortal firmeza
 
Tricanas desta terra e lindas costureiras
 
 
 
Escutai o que eu digo, e vós também sopeiras:
 
Dai vida, amor e alento aos nossos corações
 
Que se podem gelar, neste mar de ilusões;
 
Sem a esperança sequer, que venha um só sorriso
 
Do vosso doce agrado abrir-nos um paraíso;
 
Bera podereis saber que a bela mocidade,
 
Apenas tem um fito — O amor, a liberdade.
 
 
 
Mudemos pois agora as nossas chiadeiras
 
Pra assunto que não é para grandes brincadeiras.
 
 
 
Escutai-nos também, vós, que estais às janelas.
 
Damas nobres, gentis, encantadoras, belas.
 
Que temos de falar sobre um caso engraçado
 
Fresquinho, que inda há pouco assim nos foi contado
 
 
 
Consta que a nossa deusa a velha ralhadeira(1)
 
Que foi — (bendita Deis) — grande namoradeira.
 
Que já nem bem segura um gato pelo rabo,
 
Do Cupido e de nós, diz coisas do diabo!
 
 
 
Queixou-se ao deus Apolo, e foi-lhe assim dizendo
 
Que por tudo o que sabe, e pelo que está vendo
 
É nulo este liceu, que, dentro da cidade,
 
É a plena perdição de toda a mocidade;
 
E afirma quanto diz a velha fedorenta
 
Entre outras mil razões estas que ela apresenta:
 
 
 
De que nesta cidade há moças interessantes
 
Damas de encantos mil todas muito galantes
 
Que por esta razão a grande, estudantada
 
Doidinha, a namorar, já não estuda nada.
 
Também se queixou mais dum logro a ela feito
 
Pondo a dentuça em vós, e sem nenhum respeito:
 
 
 
Diz, que ao muito rogar, das damas da cidade.
 
Julgando as petições feitas com lealdade,
 
Fez que se estabelecesse aqui um bom liceu
 
Dizendo, arrependida o grande mal foi meu.
 
 
 
Mas sempre com despeito, ao ver que foi lograda.
 
Contra vós a fanfar, sempre a dar-vos dentada,
 
Medita, e diz assim: Ó grandes feiticeiras
 
Manhosas como são lebres das mais matreiras!
 
Então liceu, liceu, aqui para Guimarães?!
 
Rapazes cá para nós, e o liceu para os cães
 
Velhacas duma figa! então namoratório!?
 
E para o liceu — babau — apenas gaiolório?!
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Assim dizia a deusa em si, mas, despertando,
 
Tomou para o deus Apolo à queixa acrescentando:
 
 
 
Qual liceu nem liceu, delas o fim manhento
 
Tinha só no casório o grande fundamento.
 
 
 
A ideia por que eu fui por elas intrujada.
 
Foi para terem por cá muita rapaziada:
 
E eu, que velha já sou, que sou velha matreira.
 
Sem no logro atentar, caí na ratoeira!!
 
 
 
Assim Minerva a Apolo expôs quanto se passa,
 
E Apolo respondeu: “Então que quer que faça?
 
Quer que eu mande o liceu para a serra da Falperra?
 
Não seja assim tão má, não seja assim tão perra...
 
 
 
Temos por nós o Apolo, assim do nosso lado.
 
Não valeu de Minerva o seu arrazoado,
 
E o liceu ficará aqui nesta cidade
 
Para plena reinação de toda a mocidade;
 
Pois que importa por fim, ter mais uma raposa?
 
O nosso fim é amar, procurar uma esposa
 
Que tenha um dote bom. Que nos importa o estudo;
 
Quem dinheiro avezar, tem ciências, tem tudo.
 
Pois, não era melhor do que estudar latim,
 
Ir estudar amor nos olhos dum querubim?
 
Que importa a geometria, a dura matemática
 
Invenção que é causal de haver gente lunática
 
Passar a mocidade a matracar no estudo,
 
Só quem for muito tolo, ou animal lanzudo.
 
A mocidade passa, e passa num momento,
 
É fumo que se esvai, que se desfaz com o vento.
 
 
 
Viva Cupido pois, e vá Minerva à fava,
 
Ela que seja tola, ela que seja escrava.
 
Amar, isso é que é belo, amar um rosto lindo
 
É dum prazer sem par, é dum prazer infindo,
 
A vida é uma ilusão, efémera a mocidade.
 
Nada de a murchecer, busquemos liberdade.
 
Ralhe embora a Minerva, a sua rabugice,
 
É filha do mau caco, é prova de velhice.
 
 
 
Eia pois lindas damas primorosas.
 
Não deixeis de prezar os estudantes,
 
Amanhã nos vereis mais imponentes,
 
Como heróis em mil lutas triunfantes.
 
 
 
E consenti que, em plena liberdade.
 
Sem que levem a mal vossas mamãs.
 
Vos sejam por nós todos oferecidas.
 
Como brinde de amor, doces maçãs.
 
 
 
Que nós, para gozarmos a delícia,
 
De vermos vossos rostos delicados,
 
É que nos empenhamos nesta festa
 
Para merecermos assim vossos agrados.
 
 
 
Para vós é a maior honra do festejo.
 
Não é só para o Santo Nicolau,
 
Que vós sois divindades cá da terra,
 
E o nosso Santo aqui, é só de pau.
 
 
 
Mas Senhoras, é lei do Padre Eterno,
 
O que é bom não durar por muitos dias.
 
Amanhã, ao chegar a meia-noite,
 
Catrapuz! Lá se vão nossas folias.
 
 
 
Portanto, um adeus saudoso aqui firmamos
 
A vós e a muitas outras raparigas,
 
Pedindo que, dos jovens estudantes,
 
Sejam sempre — bem de alma — muito amigas
 
 
 
 
 
Vou terminar do Bando a sua cantilena
 
Que foi toda em galhofa, e não em prosa amena.
 
A nobre academia, a bela mocidade,
 
Sempre em bela união, boa fraternidade,
 
Atrás não quer ficar, dos outros já passados
 
Posto que os bolsos seus não são muito abastados.
 
Embora caro o azeite, o vinho e o bacalhau,
 
Quiseram festejar o São Nicolau.
 
 
 
Sousa Macário 
 
(1) Minerva.