Arquivo: Pregão de 1912
 
   
     
       
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           Bando Escholastico/Delfim de Vimaranes.-Guimarães.[CFN],1912 (imp. Typografia Guise).-[1] f.:il.; 42x30 cm Documento fotocopiado.-Com fotografia.
  Recitado por Alberto Virgílio Baptista  |  
      
 
     
  
 
  
 
 
No ano de 1912, consumou-se o que alguns defendiam desde a instauração da República: a Academia vimaranense decidiu, democraticamente, deixar de promover as velhas festas a S. Nicolau, substituindo-as por iniciativas de carácter filantrópico. A notícia foi dada pelo Comércio de Guimarães de 15 de Novembro:
 
"A Academia Vimaranense reunida na sua maioria resolveu este não fazer as festas Nicolinas, limitando-se apenas a realizar um espectáculo de gala no dia 1.º de Dezembro, comemorando assim a data gloriosa da independência de Portugal. O produto líquido do espectáculo reverte em benefício da fundação de uma caixa filantrópica." 
 
 
 
No entanto, as festas voltariam a acontecer, embora com o seu programa alterado. Dez dias depois daquele anúncio, outro jornal, o Imparcial, revelava que “não obstante os boatos que correram e avisos a alguns jornais, do contrário, há festas de S. Nicolau”. Os estudantes “aposentados”, com apoio dos estudantes vimaranenses que frequentavam cursos superiores no Porto não aceitaram a decisão dos novos de extinguirem as festas e decidiram organizá-las.
 
Neste ano, declamação do pregão, escrito por Delfim Guimarães e lido por Alberto Virgínio Baptista, foi antecipada para o dia 1 de Dezembro, que calhou a um domingo, para permitir a participação dos que estudavam no Porto. Como facilmente se imagina, o texto do pregão de 1912, além das alfinetadas à governação do velho burgo vimaranense, está repleto de alusões à decisão dos estudantes “novos” (classificados como líricos “bebés”) de porem fim às Festas Nicolinas.
 
 
 
 
 
BANDO ESCOLÁSTICO 
 
Levado a efeito pelos aposentados e seus conterrâneos que estudam no Porto
 
Recitado em 1 de Dezembro de 1912, pelo estudante
 
ALBERTO VIRGÍNIO BAPTISTA
 
 
 
A treva esfarrapou as asas do Levante!..
 
O Averno escancarou-se e o gigantesco Dante
 
Calando de repente os gritos de Ugolino,
 
Ficou-se a escutar de ouvido atento e fino
 
Todo o ruído enorme e monstro e colossal
 
Que vinha dum rincão do velho Portugal
 
E ecoava pelo espaço, livre de paragens.
 
Nesta terrível ária: — Ouvi, ouvi, selvagens
 
Escorraçai Minerva e o grande Nicolau!...
 
A velha tradição escangalhai-a a pau
 
E mandai ao diabo os bombos e os tambores,
 
Que a Nova Geração não grama esses horrores!..
 
Aparecei como nós de babeiro e calção
 
E vamos a jogar o beto e o pião
 
Para o largo do Liceu ou Campo do Proposto,
 
Que é esta a novidade a resumir bom gosto!..
 
Amorfalhai o que há-de sórdido e grotesco!..
 
Esbarrondai o riso alvar, carnavalesco,
 
Tudo que cheire a verve, a chiste, a pagodeira,
 
E vamos a correr até à Feijoeira
 
Uma estrela gigante, de papel de seda?
 
Selvagens, escutai: a vida, quando leda,
 
É preciso rasgá-la da cabeça aos pés...
 
É viver como nós, os líricos “bebés,”
 
A chuchar no polegar e a lamber o queixo
 
Ou a esticar a perna ao eixo- rebandeixo!...
 
Nada de tradições… A tradição é um erro...
 
A quem fizemos já o sumptuoso enterro...
 
Saltem inovações pinchantes, hodiernas,
 
Com a pinha no chão e pelo espaço as pernas!...
 
E seremos destarte a Ala dos Ingentes,
 
E até aos Cães de Pedra a perfeição das gentes!..
 
 
 
O silêncio voltara...E o Dante, boquiaberto,
 
Julgando-se talvez dum sonho mau desperto,
 
Foi procurar Virgílio, o Mestre sublime.
 
E contou-lhe o que ouviu como se fora um crime...
 
Mas o Mestre, sereno, respondeu-lhe, então,
 
Muito pausadamente, com palavras mansas,
 
Pousando-lhe no ombro a descarnada mão:
 
— Deixa guinchar, ó Dante, as pálidas crianças!...
 
 
 
*
 
Ó Vimaraens formosa, ó nossa Terra Amada: 
 
Há em ti o sorriso algente da Alvorada
 
A espargir o Amor e a fecundar mil beijos!...
 
Nós trazemos na Alma os íntimos desejos
 
De te imergir um dia em rosas de Luar
 
E em nossas liras de oiro um Poema te cantar!...
 
Muito mudada estás!...Ai! como estás mudada!...
 
Não sei porquê, agora, assim, modernizada.
 
Esse teu porte austero armou-se em bizarria
 
E do teu seio rompe um hino de alegria!...
 
O teu Jardim deixou de ser encurralado!...
 
Rasgaste um passeio de cimento armado
 
E vastos escadórios, cheios de beleza,
 
Que nos vão a indicar a loja da Havaneza!...
 
Mais acima, lá tens, embora em desarranjo,
 
Por causa das ruínas do convento do Anjo
 
Mais um largo a largar almudes de aparato…
 
Depois, ó Vimaraens, já tens um Internato
 
Onde haverá um dia a bala equitação
 
E até, num alguidar, lições de natação…
 
A Manchester tu dás na Indústria pelo ombro!...
 
Até a electra móis e gelas, que é um assombro!...
 
Já de auto omnibus vais à Braga hospitaleira
 
Quase na rapidez duma semana inteira!...
 
Fizeram tuas feiras uma tal mixórdia:
 
Que pediu a do Pão a santa Misericórdia
 
E a do Gado a largueza ao largo “brasileiro”
 
Foi o bastante, pois para que bem ligeiro
 
O S. Francisco armasse as armas tão ridículas
 
E pedisse para si “Alfaias “ só “Agrícolas”!...
 
E a Cadeia, a Cadeia?!... Aquilo é um monumento
 
Que da Sociedade do imortal Sarmento
 
Ao lado seu não vale a ponta dum cigarro!...
 
 a nossa opinião, ao vermos essa escarro,
 
Onde se geram vícios, crimes, podridões,
 
Era modificá-lo em jaula, para leões…
 
Política, se a tens, a paz seja contigo
 
E o arcanjo S. Miguel te livre de perigo...
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Mas… mudando de assunto, alfim, para variar:
 
Tu não sabes talvez o que nos faz chorar.
 
Ó nobre Vimaraens de tradições velhinhas?!...
 
Pois bem, é aquele achado ali nas Capuchinhas,
 
Que pelo tic e som e essenciais maneiras
 
Tanta falta nos faz às magras algibeiras!...
 
 
 
*
 
Minerva, então que é isso! Vamos... porque choras?!... 
 
Quando nos vês porque é, ó Deusa, que assim coras
 
E o rosto teu escondes, cheia de vergonha?!...
 
Ora diz-nos cá; porque é que andas tristonha,
 
Tu que eras expansiva, alegre, tão vivaz?!...
 
Pois bem: sabemos tudo e onde esse mal voraz
 
Com raiva germinou para te fazer sofrer!..
 
Se Júpiter, teu pai, o chega a aperceber
 
Que desgosto terá, ó Deusa da Ciência.
 
Embora logo em ti descubra a inocência!...
 
Levarem-te os “maraus” ao “Púcaro”, sem dó,
 
E entre as pipas, depois, deixarem te ali só
 
No mais cruel desdém e abominável trato!...
 
Ah! se não fora, não, o bom “Domingos Rato”
 
A estas horas, quem sabe, ó Deusa, onde estarias?!...
 
Talvez nos vagalhões terríveis das orgias,
 
Perdida para sempre em densa escuridade!!
 
— Bebés sem coração! Horror! Perversidade!...
 
 
 
*
 
Senhoras, perdoai! Nós somos tão velhinhos, 
 
Que ao chorarmos a nossa loira Mocidade
 
Fazemos recordar os lívidos ceguinhos
 
A chorarem a Luz com preces de Saudade!
 
Já não podemos, não, dizer-vos como outrora,
 
Cingidos de Luar por essa Noite em fora,
 
Temendo ao buliçar dos meigos arvoredos,
 
Juras feitas de Amor e divinais Segredos!
 
Ai! somos tão velhinhos! Que saudade imensa!
 
Até já nos fugiu aquela santa Crença
 
Que esplende a Felicidade em rútilos clarões
 
E que tínhamos dentro em nossos Corações
 
De eternamente amarmos com o mesmo ardor!
 
E tudo nos fugiu e só nos resta a Dor:
 
Os nossos corações tremem com frio, ouvi...
 
Afundam-se a chorar em tremedais de brejos!
 
Senhoras, compaixão, levai-os até aí
 
E aquecei-os, por Deus, no fogo desses Beijos!...
 
Ai! somos tão velhinhos! somos tão velhinhos,
 
Que precisamos tanto, tanto de carinhos
 
E pedimos humildes e leais e francos:
 
— Senhoras, afagai nossos cabelos brancos!...
 
 
 
*
 
Velhotes, preparar!... Eu quero os “sons” imersos 
 
Num bombástico mar, terrível, colossal!..
 
Que até horrorizados saltem de seus “berços”.
 
Aos gritos pelos pais, com mil espalhafatos,
 
Julgando ser o fim do velho Portugal,
 
Os líricos “bebés”, os místicos “novatos”!...
 
Rufai esses tambores! rasgai esses zabumbas!
 
Fazei estremecer os mortos e as tumbas,
 
E, ouvindo esses estrondos infernais, satânicos,
 
Que tremam a “Turquia” e os “Estados Balcânicos”!...
 
Dezembro de 1912. 
 
Delfim de Vimaranes 
 
 
 
 
  Transcrição e comentários de António Amaro das Neves 
  
 
  Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/ 
  
 
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