Arquivo: Pregão de 1914
 
   
     
       
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        Pregão Escolástico [Impresso] /Leão Martins.-Guimarães:[CFN], 1914 (imp. Pap. e Typ. Minerva Vimara-nense) .- [1] f.;42x28 cm. Impresso s/ papel branco a azul.-Dois exemplares, um deles restaurado com fita cola.
  Recitado por Francisco d’ Assis Pereira Mendes |  
      
 
     
  
 
  
 
 
Em 1913 não houve Festas a S. Nicolau em Guimarães. Regressariam em 1914, mas há poucas notícias do modo como então decorreram. Aparentemente, resumiram-se à entrada do pinheiro, no dia 29 de Novembro, e à declamação do pregão, no dia 5. O texto do pregão deste ano foi escrito por Leão Martins, que o dedicou à memória de João de Meira, entretanto falecido. Na versão imprensa, consta como pregoeiro o estudante do 5.º ano Francisco de Assis Pereira Mendes. No entanto, os jornais anunciavam que o pregão seria declamado pelo quartanista Mário Guimarães.
 
 
 
 
 
PREGÃO ESCOLÁSTICO 
 
Recitado em 5 de Dezembro de 1914
 
pelo estudante do quinto ano
 
Francisco de Assis Pereira Mendes
 
 
 
À memória do saudoso douto e apaixonado entusiasta das Festas Nicolinas,
 
João de Meira.
 
 
 
Pio IX ao saber que a Festa não se fez
 
Porque a rapaziada assim o compreendeu,
 
Disse para consigo: — Ah! Ah! que desta vez
 
                               S. Nicolau morreu...”
 
 
 
E até o D. Afonso, outrora tão valente,
 
                               Baixinho, perguntou:
 
— “Estudantada nova, ingénua e inocente,
 
                               A Festa terminou,
 
A Festa tão antiga, a Festa de nobreza,
 
                               A mais original?
 
Oh! nunca fosse rei da gente portuguesa,
 
                               Nunca, para meu mal...”
 
 
 
Cada um assim pensava… ambos tinham razão...
 
— Pois se o ano passado a Festa não brilhou!!
 
O que lá vai, lá vai! termine-se a questão
 
Que o nosso Nicolau às lidas já voltou...
 
 
 
Guimarães já não tem, como antigamente,
 
Um aspecto caduco, intriguista, indecente.
 
Que ao nosso forasteiro outrora oferecia...
 
Guimarães despertou de funda letargia
 
E ao clarão duma luz fugiu do retrocesso
 
E disse em alta voz:
 
                               — “Eu cá vou no progresso!
 
Senão examinai:
 
                               — Já viram alguma vez,
 
                       Em solo português,
 
Cidade como a nossa, embelezada, enfim,
 
Conhecida lá fora — a Cidade-jardim?
 
— Já viram em sítio algum (e como as coisas são!)
 
Marquises de luar às portas do Jordão?
 
— Já viram alguma vez a luz que faz tonturas
 
Que ou alumia bem ou nos deixa às escuras?...
 
— Quando é que já se viu templos em árdua guerra?
 
Oliveira reclama e deita logo a terra
 
O colega S. Paio e, nestes tempos maus,
 
Semeia aquele largo a abundantes calhaus...
 
— Onde é que se percorre (isto por dois tostões!)
 
Quatro léguas ou três, de grandes dimensões,
 
Como daqui até Braga em carros do Barroso?
 
— Avante, Guimarães! caminha glorioso I!
 
— Qual cidade é que tem (não vão julgar que é troça!)
 
Esquadra policial activa como a nossa?
 
— Quando é que já se deu (ouçam, tenham paciência!)
 
Ao ler-se um testamento,
 
Herdarem capital o Manaca e a Vicência?
 
— Quando é que Guimarães teve o supremo gosto
 
De, manhã cedo ou tarde, à hora do Sol-posto,
 
Ouvir sinos tanger, com certo cuidadinho,
 
Pelo nóvel e importante artista o Arranjinho?
 
— Quando foi que as mulheres, à moda de Inglaterra,
 
Declararam-se cm greve, aqui, na nossa terra,
 
Como no Castanheiro há dias sucedeu?
 
— E depois, e depois?... tenham bem lá na vista:
 
Quando das eleições, um grupo socialista
 
                               Na cabeça lhe deu
 
Para a urna concorrer; e, se o grupo vencesse,
 
                                (Peta não parece!)
 
De braço erguido ao ar, diria em forte voz:
 
— “Quem manda no poleiro agora somos nós!
 
Chegou enfim a voz ao povo lutador
 
Que vivia oprimido, há muito, como um fardo...”
 
                                —Olha a mula, oh Bernardo!!
 
 
 
Quem do alto do castelo olhar por um funil.
 
A eléctrica verá, lá baixo, em Creixomil...
 
Quem numa padaria o trigo for comprar
 
Pela lei não poderá o pãozinho apalpar...
 
Como qualquer potinho à fonte não pode ir
 
                                Sem testo... para o cobrir.
 
Pois de contrário o guarda exclamará assim:
 
— “Pelo código atendendo, oh filha, estás multada...
 
Um escudo para a Câmara e outro para mim,
 
                                Larga, não custa nada!”
 
 
 
— Deixa de ti falar, oh velho Guimarães
 
E recebe de nós sinceros parabéns!...
 
 
 
— “Adeus, formosa flor! é seu meu coração!
 
Vá! não seja tão má! diga adeus...
 
                                                   — “Queim, João?
 
— “Casta donzela! seja meiga! ai! quem me dera
 
Estar unido a si! Oh! que felicidade
 
Seria para os dois, amor...
 
                                           — “Não que antom era!
 
                                — “Sim, na realidade,
 
Não sabe o quanto sofro... imenso padecer..
 
                                — “Não que antom deve ser..
 
— “Atenda ao que lhe digo, eu falo-lhe com fé...
 
                                — “Isso! não que antom é...
 
— “Feia!!... porque não crê na minha confissão?
 
                                — “Queim? Jo... não vai, João...
 
— “Malcriada mulher! para si não tomo a olhar...
 
                                — “Está bem, deixa ficar...
 
 
 
Um dia Guimarães ia sendo roubado.
 
Vizela, sua filha, de sangue endiabrado,
 
                                Destarte lhe falou:
 
— “Mocidade para mim, meu pai, já terminou.
 
Cansada de viver, sem confortos, sem luz,
 
Mal posso suportar o peso desta cruz
 
Que me aprofunda a dor. Quero-me libertar,
 
Juntamente com os meus. Desejo-me casar,
 
Ter uma vida nova, enfim, estar liberta,
 
Deste freio cruel que minha boca aperta..
 
Solte-me da prisão... que eu seja independente,
 
Liberdade gozar como toda essa gente
 
Que vive feliz. Pai: satisfaça ao pedido,
 
                                Conceda-me o meu dote...”
 
 
 
                                E não compadecido,
 
Furioso Guimarães, cansado e já velhote,
 
À filha respondeu:
 
— “É demais... todavia eu dar-te-ei o que é teu..
 
Mas tanta pressa, filha, (ele disse sorrindo...)
 
Não é tua essa ideia... isso vem do Armindo
 
E de outros tantos mais. Querem-te desgraçar...
 
A cantiga é de morte... a tua autonomia
 
Só para depois... deixa-me a mim governar.
 
Os de Vizela, então, queriam mais folia?
 
                                Que esperem lá por isso!
 
Maldito seja quem te meteu no toutiço
 
Essa ideia mesquinha, avara e tão manhosa!
 
Péssima educação, minha filha vaidosa!
 
Ai de ti e dos teus! Mas isso o que me importa?
 
Lá fora, filha ingrata, anda, fora da porta,
 
                                Não estou para te aturar...
 
Poltrões! poltrões! poltrões!l Pensavam em me matar...”
 
 
 
E o velho Guimarães pondo a mão na barriga,
 
Da afronta se vingou fazendo-lhe uma figa...
 
 
 
— Damas de Guimarães! Deusas cheias de graça!
 
A luz do vosso olhar que nossa alma inebria
 
É balsamo suave... é brisa que perpassa...
 
Deste viver atroz sois a nossa alegria!
 
Damas de Guimarães! oh anjos da bonança!
 
Que a minha terra cria e conserva e retêm:
 
Vós sois o nosso guia em quem temos esperança!
 
Se padecemos nós, vós padeceis lambem.
 
Damas de Guimarães: se a nossa Festa brilha
 
É porque auxilio há, mas de certo valor!
 
A ninfa que deslumbra, a deusa maravilha
 
Da Festa a Nicolau — sois vós o Protector!
 
 
 
                                Rapazes, atenção:
 
A lei de Nicolau decreta, neste dia,
 
A todo o estudante amigo da folia,
 
                                Que o bombo entre em acção.
 
Rufai valentemente! a Festa é de valor!
 
— Que importa que arrebente a caixa ou o tambor?
 
— Que importa que o barulho aumente em grande escala
 
                                Se cada pele que estala
 
Atroa muito mais que os célebres canhões
 
Usados lá na guerra? Avante! sem receio
 
                                E força nos pulmões!
 
Arrebentai, enfim, tudo de meio a meio I
 
De parte a perfeição. Inútil é o acerto.
 
Instrumentos — deixai ficá-los sem concerto,
 
Para que essr. gente diga, hoje, neste dia:
 
                                — “Cada um dos canhões
 
                                Da nossa artilharia
 
Tem muito mais valor que os seis dos alamões!!”
 
Leão Martins 
 
 
 
 
  Transcrição e comentários de António Amaro das Neves 
  
 
  Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/ 
  
 
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  António Amaro das Neves 
  
 
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