Arquivo: Pregão de 1923

Bando Académico [Impresso]/João Ninguém.- Guimarães: [CFN],1923 (imp. Pap. e Tip. Industrial) .- [1] f.; 46x26 cm. Impresso s/ papel branco a azul.- Segundo uma inscrição manuscrita João Ninguém é o pseudónimo de A. L. de Carvalho.

Recitado por Fortunato Leite de Faria
   
O pregão das festas a S. Nicolau de 1923 teve um novo autor, João Ninguém, que vem a ser uma espécie de "convertido" às Festas dos Estudantes de Guimarães. Trata-se de A. L. de Carvalho, o mesmo que, após a Revolução do 5 de Outubro, defendera, nas páginas do jornal Alvorada, a extinção das festas a S. Nicolau e a sua substituição por algo mais “útil” ao progresso da humanidade e dos estudantes carenciados do Liceu de Guimarães. 
Este pregão é uma espécie de jornal em verso do ano de 1923, onde se fala da Exposição Industrial daquele ano, da morte de Guerra Junqueiro, da Sociedade das Nações, da ditadura de Primo de Rivera, em Espanha, que andava “com la gana de ser um Mussolini-bera”, e de muito mais. Foi recitado por Fortunato Leite de Faria, estudante do 7.º ano de letras.

BANDO ACADÉMICO
Recitado pelo estudante do 7.° ano de Letras
FORTUNATO LEITE DE FARIA
em 5 de Dezembro de 1923

SILÊNCIO ó sócios meus da Academia!
Emudeçam bombos, tambores; cesse a folia.
Reparem!... Ao longe, nos longes do poente,
Envolto em poeira de oiro, aurifulgente,
Oh! como avança solene, hierática,
Qual ronda de espectros… elit aristocrática,
Soberba, altiva, quase poder de Estado,
Manto, murça branca, cabeção encarnado!...
Oiçamos-lhe as vozes — litania suspirada!
Deprofundis rezado à nobre Colegiada!
Pedras da “Sé sem bispo” choram, em coral.
Mortas liturgias da “Insigne e Rial”!...
Glória extinta! revive em nós esta visão:
Um Cónego ainda há. Um, por excepção.
Um, é pouco. Concordemos. É muito pouco!
Mas, se não acham bizarro, discorrer louco…
Como Noé no dilúvio universal,
Vivo esse um! Seja-lhe a vida imortal!
É Mestre culto; Mestre bom; Mestre indulgente:
— Senhor Cónego: fique... fique para semente!

Tudo passa! Tudo! Homens, instituições.
Impérios, povos, ideias, civilizações...
Tudo se transforma — prodígio de alquimia! —
Na retorta do tempo... e da filosofia.
Fora dos eixos anda o próprio planeta.
E não há, senhores, quem nos eixos o meta!
É ver: Na Ásia, onde Deus Buda é chamado
E o imperador se usa chamar — Micado,
Um sísmico abalo, fervido vulcão.
Pondo-lhe a terra e os mares em convulsão.
Abismou, soterrou, cidades e montanhas.
Como se um semi-deus feroz e sem entranhas.,
Confundindo a Ciência e os Elementos.
Quisesse ensaiar, provar. — óh! vãos intentos!—
Em cátedra solene e em grande acto,
Que este mundo não é esférico: — é chato!

Sim, quem sabe?... Porque este mundo, afinal,
Longe, muito longe, de ser transcendental,
Não passa de ser, (isto fora de loquelas),
Duas, apenas, grandessíssimas gamelas!
Comer ou ser-se comido — eis as questões!...
Se não que o diga a tal Liga das Nações:
Esse alto tribunal onde a diplomacia
Dá lições de direito e... geografia.
Exemplo: vede essa salada dos “sovietes”,
Esse trágico e cómico entremês,
Onde a poda foi maior que o enxerto,
Para final... deixar o cilindro sem conserto!
Quanto à Alemanha, ferrabraz e caserneira.
Oh! querendo engolir a Europa inteira.
Está sendo pelos próprios filhos devorada!...
E a nobre França, no Ruhr, em poz armada.
Estafando o disco da sua Marselhesa,
Beijoca os Aliados... sem largar o preso!
E que dizer do nosso Primo de Rivera.
Com la gana de ser um Mussolini-bera?!...
…Ai, para lá, para lá com essa União Ibérica!
Wilson idealista, a chorar na América.
Vendo derreada a velha humanidade.
Vergada ao peso de tanta fraternidade!
— Não, Primo! Ide... ide aos mouros da mourama!...
Portugal! Portugal! minha voz te proclama,
Independente, e livre, e imortal!
Tua história é grande e bela — sem igual!
És filho de aventura e da fé exalçada!
És santo e herói pela cruz e pela espada!
Viverás no tempo e viverás no espaço!
Cavaleiro antigo, de armadura de aço.
Tu lutarás contra víboras e chacais,
E nunca serás vencido! Jamais! Jamais!
Pois inda que a este epilético mundo,
Rajada ciclópico o meta ao fundo,
E todo se desfaça em cacos, pelo ar,
Ó Pátria lindo! Tens asas para voar!...

Ventos da fortuna! Oh! cruéis inclemências!
Quinze disciplinas no 6.° de ciências!...
Ai, nunca a imagem nos foi mais a primor:
“Um... carregadinho de livros, é doutor!»
E para que tanta ciência de contraforte.
Se, de mais a mais, quanto mais burro, mais sorte?!”
Cebolório! Isto dum homem estudar,
É pior — que ir à Havanezo pelo ar!...
Indo mais: é como se fero senhorio
Pusesse ao relento, à chuva, ao frio,
A Juventude!... Que para não ir para a cova,
Se resignará ir — para a Cadeia-Nova!
Estudar não é esse fácil heroísmo
De ir à Penha fechar (?) um hotel, por turismo.
Ou ir a Ronfe, de papo feito, inchado,
Buscar lã… churra, e vir de lá tosquiado!...
Estudar, óh!, é labor e dos mois galhardos!
Mais que o de vencerr (?) lidadores algemados,
Mais que esse bairrismo cruel, fementido,
De levnr ao prego a Casa do Cabido!...
Vale mais, muito mais, nosso vinco de estudo,
Que ser deputado em cortes — pato mudol…
Estudar, custa; massacra; mas é delícia.
Quando se estuda a psicológica polícia,
Simbolizada da cabeça até aos pés.
Nesse sonâmbulo polícia — o 10!
Estudar é aguilhão... Sim, é. Mas produz;
Aumenta... sem aumentar o preço à Iuz!...
“Saber não ocupa lugar”; e é um dote;
Tão raro, como no Padrão ver o pelote,
Ou algum melhoramento adiantado,
Por conta desses projectos — papel pintado!...
Estudar é, em resumo e sem sofisma,
Mais que os fiéis de S. Miguel chocar—um cisma!...
Creiam! Foi só o estudo quem permitiu
O milagre — dum Arcebispo que aderiu!...
Estudar (oiçam I) só tem proeza igual,
— Sabem em quê? Na Exposição Industrial!
Isso sim, que foi grande e belo,— a valer!
...Que até cá veio um Ministro, a correr (!!!)
Glória ao Trabalho! Glória ao povo obreiro!
Glória a Chico Martins! e mais João Loureiro!
— Para os quais se não propomos estátua de afecto,
É para que se não perca... mais um projecto!

Morreu Junqueiro! Têm menos perfume as flores!
Ó Poeta máximo, dos sons e das cores!
Teu lirismo jocundo, rútilo e sonoro.
Astral e grande como a luz dum meteoro.
Refulge no infinito azul dos céus!
Vive na Raça! na Natureza! em Deus!
Lira imortal!... Alvoradas do divino!...
Oh! cantai! cantai o Eterno Feminino!...
Embora o Amor (perdoem Vossos Excelências!)
Seja, por uma vil questão de subsistências,
Tãoc prosaico... que quere, à primeira vista.
Que de Campelos sejamos acionista!...
Acabou o romantismo! Frase profano
É gritar; “O teu amor e uma cabana!”
...O amor, hoje em dia, é uma grande espiga!
Oh! antes! antes o amor à moda antiga!...
Serões de outeiro, com freiras e marmelada.
Frase feita... gesto largo... capa e espada!
Ai! não havia como um lausperene de amor,
Escodeirado nas “casinhas do Senhor”!
Té os santos, vendo o herético beliscão.
Diziam contritamente: “Perdão! Perdão!”
Pois sabiam, bem sabiam, (óh! doce-encanto!)
Que pecadilhos de amor... os faz um santo!

Alerta! pois, alerto! ó briosa Academia!
Conspiro contra nós, Padre José Maria!
... Ele, com o jeito que Nosso Senhor lhe deu,
Vai no Internato enclausurar o Liceu!
E como há-de um “papo-seco” flartar.
Se o portaria fecha e a regra e — estudar?!...
Remédio? Voltar Santa Clara ao passado;
Fazer do Liceu um convento restaurado.
Mas convento duplex; com capas e batinas.
Onde se estude em côro, laudes e matinas.
Só assim, bem unidinhos os corações,
Conjugaremos o vervo amar — sem lições.
Juntinhos, e na mais santa comunidade.
Ai! como é bom tomar o hábito de frade!...
Mas, não! Perca-se diploma, formatura.
Perca-se tudo! Mas não se perca a ventura
De um curso poder tirar, em liberdade.
— Um curso de amor na vossa Universidade!
Somos filhos do sol! troveiros do luar!
Engaiolados... té perdemos o cantar!

Mestres! Ouvi meu apelo: — Tomai mais suave
A regro do convento! Somos aquela ave.
Onde duroa seta abriu ferida de amor.
Mestres! Armai (que vos custa?!) em Redentor!
Em Santo-Homem-Bom, se tanto vos apraz!...
Mestres! Deixai passar o cábula — sagaz.
Vede como grita! Como todo se inflama;
— Rapazes! Rufai! Oh! rufai... por Nossa Dama!
João Ninguém
[A. L. de Carvalho]

Transcrição e comentários de António Amaro das Neves
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