Arquivo: Pregão de 1947
 
   
     
       
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        O Pregão de S. Nicolau [Impresso] / Delfim de Guimarães. Guimarães: [CFN], 1947 (imp. Gráfica Minhota).-[1] f.; 35x25 cm. Impresso s/ cartolina a dourado.
  Recitado por Armando José d’ Abreu e Andrade |  
      
 
     
  
 
  
 
 
Em 1947 o pregão voltou a ser escrito por Delfim de Guimarães. 
 
Foi lido por Armando José de Abreu e Andrade.
 
 
 
O PREGÃO DE S. NICOLAU 
 
Recitado em 5 de Dezembro de 1947 pelo aluno do 6.° ano
 
Armando José de Abreu e Andrade
 
GUIMARÃES
 
 
 
Madrugada no burgo. Uns vultos, embuçados
 
Batem rijo no chão seus passos apressados
 
E dirigem-se ao largo em frente do Castelo
 
 
 
O céu picado de oiro, é imensamente belo
 
 
 
Chegados, um a um despojam-se dos mantos
 
De tudo ali se encontra — homens de guerra, santos,
 
Artistas, menestréis, fidalgos e a arraia;
 
— S. Dâmaso, Moniz, Froilaz Marinho, Maia,
 
Gil Vicente, D. Paio, Hilarião, Sarmento,
 
Catarina de Sousa — a Safo de talento —
 
Mestre Soares dos Reis, D. Bibas, o jogral
 
Do Conde D. Henrique — um bobo assaz leal.
 
 
 
Soares dos Reis, agora, aponta sobranceiro!
 
A brônzea estátua e diz: — É o nosso Rei primeiro.
 
De argila, em minha Gaia, eu fui que o modelei.
 
Pertence a Guimarães, é o seu altivo Rei...
 
 
 
Egas Moniz avança e brada em voz potente:
 
— Seu aio, o eduquei. Toda a minha alma o sente.
 
Em Santa Margarida, a capelinha ao lado,
 
S. Geraldo o afirma, ali foi baptizado...
 
De Guimarães, Afonso, é filho, é natural,
 
E bem alto aqui está para todo o Portugal.
 
 
 
Um sussurro de aplauso, em volta, fundo, ecoa.
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
D. Ribas, o jogral, da treva, diz faceiro:
 
— São três gémeos, são três... Eis aqui o primeiro,
 
O segundo no Rio e... mais outro em Lisboa...
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Os vultos, como fumo a um a um se vão!
 
Batidos pelo riso infrene do truão...
 
*
 
Vede que maravilha!... Ó povo, isto é assombroso:
 
O burro secular, esquálido e leproso,
 
Que puxava a carroça ignóbil do correio,
 
Agora não é burro, embora traga o freio,
 
Agora é um cavalo e rincha que é ginete
 
Por ver a antiga carga em rica fourgonette!...
 
 
 
E a tal carroça inchou, inchou de tal maneira
 
Que é hoje transformada em charabã de feira...
 
*
 
A nossa terra é assim... Aqui, ou tudo ou nada...
 
Vejam o singular exemplo da toirada
 
O gesto do Pimenta, a garra do António,
 
O povo a trabalhar, terrível qual demónio,
 
Toda a gente na rua, indómita, colérica,
 
Que a nossa gente é assim!... É assim a nova América!...
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Mas quem incendiou?!... Mistério!!... Quem seria?!...
 
(Talvez algum fantasma, um morto da Atouguia...)
 
*
 
A nossa terra é assim... Ter água ou não a ter,
 
Eis a grande questão... E logo (estais a ver)
 
Para nós o Ave galga, atrás do Ave o Selho,
 
Que a gente anda com água acima do joelho...
 
Aqui nunca se fez o tal mercado escuro!!...
 
Vende-se o bacalhau, o azeite fino e puro,
 
O cabrito, a vitela, um bom almoço, um fato,
 
Pelo preço da tabela e, às vezes, mais... barato...
 
 
 
O nosso ZÉ é assim,.. Já farto da miséria.
 
Daquilo que se vê ao cimo duma artéria
 
E se chama Estação, deitou a albarda ao ar
 
E já nem quer ouvir a máquina a apitar...
 
A caminheta tem a entrada mais catita,
 
E o velho casarão apita... apita... apita...
 
A nossa terra é assim... Toda a avenida e rua
 
Têm luz em profusão (mas quando é cheia a lua...)
 
...Ser amplo o Matadoiro há que anos não podia!!!...
 
 Mas quem o tira lá daquela porcaria?!...
 
A nossa terra é assim... O seu Liceu (de outrora)
 
De ensino não vai mais que ao sexto (por agora...)
 
O sétimo, talvez... (por permissão gentil)
 
Se volte a ensinar para o ano de dois mil...
 
Esta terra querida é o berço do Albano,
 
Do que tem coração, do Homem que é humano,
 
Que deu à nossa Penha a vida, a luz, o som,
 
Ouvindo-se do alto a voz do carrilhão...
 
É o berço do Sampaio, o avô das graças finas,
 
O mais querido avô das Festas Nicolinas...
 
É o berço que embalou a Pátria Portuguesa
 
Mas que precisa ter, nas ruas, mais limpeza...
 
*
 
Tricanas que passais arfantes, em corridas,
 
Ah! Se a noite falasse ali, nas Avenidas,
 
O que ela não diria a noite escura e má!!...
 
Mas ela não diz nada.., E... “tá bem ou não tá”?!...
 
*
 
Escravas do dedal, olhai e vinde a nós...
 
Cosei estes rasgões com beijos de retroz,
 
Retroz que mais nos rasga... E oh! quantas vezes quantas!...
 
...Mas não o digais não, por Deus, “àquelas santas*...
 
*
 
Senhoras: se no céu os biliões de estrelas
 
Têm fulgurações divinamente belas,
 
Aqui, na velha Terra heráldica e formosa,
 
Heis de ter, amanhã, em calvagada airosa,
 
A Entrega das Maçãs, um acto de oiro alado,
 
Que ofusca todo o brilho a um lindo céu estrelado...
 
A Entrega das Maçãs, Senhoras, é o final
 
Do torneio galante, e brando, e ancestral,
 
Que por vós sai a campo a doida mocidade!...
 
É o torneio final que a nossa Festa reza,
 
É a ponta duma lança, é o pomo da beleza!...
 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
Senhoras, é, por vós, a ânsia da Amizade!...
 
*
 
Soldados de Minerva, a postos!... Perfilados!...
 
Os zabumbas ao peito unidos, bem alçados,
 
Maçaneta na mão e pronta a entrar em luta!...
 
Soldados! bem de pé, honrai a bateria!...
 
Que na Rússia, Estaline acorde e pasme à escuta
 
Do troar dos canhões dá nossa artilharia...
 
Soldados, derrotai, valentes, sem temer,
 
O Imigo Silêncio e rudo aventureiro!...
 
De maçaneta em riste havemos de vencer
 
Talvez o outro mundo e este mundo inteiro!...
 
         Dezembro de 1947. 
 
         Delfim de Guimarães 
 
 
 
Transcrição e comentários de António Amaro das Neves 
 
Publicado originalmente em http://araduca.blogspot.pt/ 
 
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